Jerri Almeida
O sociólogo
polonês Zygmunt Bauman tem sido um interprete e um crítico perspicaz da
sociedade contemporânea. Observador atento e analista metódico, vem refletindo
sobre o contexto complexo, desafiador e frágil dos valores atuais, apontando de
forma clara e contundente os pontos problemáticos de nossa cultura. Em seu
livro Capitalismo Parasitário Bauman
volta seu olhar para temas como “cultura da oferta”, “consumismo”, “desejos”, “cultura
do medo”, “capitalismo”, entre outros. Suas reflexões não podem ser
classificadas como pessimistas, todavia, ele próprio não se considera um
otimista (no seu entender, a pessoa que considera que tudo está bem), mas se
define um “homem com esperança”.
Realmente,
diante do mal-estar da civilização do “instantâneo”, do
“crédito/consumismo/dívida”, resta-nos não abandonar a esperança no futuro. Vivemos
uma sociedade do “desfrute agora e pague depois”, pois com a criação do cartão
de crédito, a cultura do consumo recebeu um forte aliado. O discurso sedutor
passou a ser então: “não adie a realização de seus sonhos materiais”. Se você
deseja adquirir algo, mas não ganha o suficiente para isso, basta ter
“crédito”. Assim, para Bauman, com os cartões de crédito foi possível inverter
a ordem dos fatores, isto é, desfrute agora e pague depois.
Dessa forma, a
satisfação dos desejos se ampliou consideravelmente, pois para muitas pessoas
foi possível obter as coisas quando desejar e não quando ganhar o suficiente
para obtê-las. A sociedade capitalista, portanto, recria periodicamente novos
mecanismos para se manter dominante. O resultado disso, pelo menos para uma
significativa parcela da população, é que o “depois” se transforma em “agora”,
ou seja, o crédito necessita ser pago. Para Bauman: “...o pagamento dos
empréstimos, contraídos para afastar a espera dos desejos e atender prontamente
as velhas aspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios.”[1]
Essa lógica
materialista da vida contemporânea define novos padrões de comportamento,
individual e coletivo, determinando, também, uma cultura da superficialidade,
do “use e descarte”, onde os indivíduos são possuídos pela posse possuidora e
escravos da posse que ainda não possuem. É aquilo que foi denominado de cultura
da “obsolescência imediata”. A regra não é mais “acumular coisas”, mas “usar,
descartar, usar...”. Nada deve dura por muito tempo que comprometa essa máxima.
O ritmo para que algo se transforme em “antigo” é cada vez mais rápido, ao
sabor do próprio desenvolvimento tecnológico e de suas artimanhas comerciais.
O problema é
que essa “liquidez cultural” tem transitado para outros setores da vida humana
com impactos, principalmente, nas relações conjugais. A velha frase: “até que a
morte os separe” parece ter se tornado, na contemporaneidade, uma “peça de
museu”. Para Bauman, dos objetos e dos laços espera-se que sirvam por somente
algum tempo, tornando-se descartáveis são logo substituídos por outros mais
novos. Ao mesmo tempo, todo esse ritmo, tremendamente rápido da vida atual, sob
o impacto do imediatismo, contribui para a definição de níveis de ansiedade,
impaciência e intolerância, que por sua vez também fomentam o aumento do
estresse, da agressividade e do medo.
Trata-se de uma análise realista da sociedade
materialista, que também se intitula religiosa. Mas é necessário advertir o
leitor que não se trata de mergulharmos numa onda de pessimismo desolador. É
preciso dizer, também, que nem todas as pessoas aderiram a essa cultura
liquida, pois muitas conservam valores sólidos, administrando com equilíbrio e
sensatez o material com o espiritual.
O princípio do
prazer, consubstanciado na liquidez dos valores, se defronta, inexoravelmente,
com o princípio da realidade, definido nas leis naturais da vida. Isso
significa que todo prazer que termina gerando um desprazer deve ser reavaliado.
São as leis da vida nos chamando para a realidade mais profunda. Dessa forma, a
ansiedade, o estresse, o medo, os desafios conjugais e familiares, a violência
urbana, a corrupção, entre outros, são os sintomas dessa sociedade que adoeceu.
Por
muito tempo, desde Aristóteles, se tenta encontrar respostas para explicar o que é uma “vida boa”. O ser humano
tem buscado equacionar essa questão através da satisfação dos desejos,
intensificando a busca pelo prazer material. Para lográ-lo, muitos têm rompido,
e corrompido, com os valores mais nobres, que dignificam o próprio sujeito. A
cultura liquida nos induz, por sua vez, a depositar nesse espaço a preocupação
constante com os valores utilitaristas e superficiais do mundo. Todavia, nos
momentos de desafios pessoais, a quase ausência de valores construídos
interiormente demarcará um terrível vazio psicológico e espiritual. Como
enfrentar problemas empobrecidos interiormente? A cultura líquida responderá
simplesmente: “não sofra, tome antidepressivos...”. O materialismo não
estabeleceu a impossibilidade do sofrimento, pelo contrário, vem colaborando
para aumentá-lo.
A rigor, criar
rotas de fuga dos compromissos sociais, afetivos e espirituais somente poderá
contribuir para o esvaziamento do sujeito. Nesse sentido, observa Stuart
Jeffries[2] que
a liquidez dos relacionamentos emocionais ensejou o denominado
“compromissofobia”, onde passam a ser cada vez mais comuns nas grandes
metrópoles, os casamentos com “data de validade”, ou até que os cônjuges
comecem a se cansar dos compromissos assumidos, minimizando a exposição aos
“riscos” ou aos “espinhos” da convivência que se revelam gradualmente, ao sabor
do tempo.
O que isso representa? Colocar a
transitoriedade no lugar da permanência é uma fuga, não do outro, mas de si
mesmo. Todo relacionamento emocional duradouro necessita ser nutrido com base
no “cuidado”, princípio fundamental da “conservação”. Mas “cuidar” exige
esforço, trabalho interior de ambos os envolvidos para “domarem suas más
inclinações” (impulsos). A liquidez dos compromissos sinaliza, por certo em
muitos casos, um processo imaturo, pois manter uma convivência implica o
exercício regular de alguns valores ou sentimentos básicos: diálogo, renúncia,
paciência, doação, respeito, entre outros.
No conceito da cultura tradicional
afirmava-se: “vivemos um para o outro”, com a modernidade líquida ficou:
“vivemos para satisfação de nossas necessidades individuais”. Dessa forma, a
ideia de uma vida boa tem sido definida ou relacionada, de um lado, ao
exercício de uma onipotência imaginária pelo uso desenfreado da liberdade e,
por outro, ao hiperconsumismo baseado na máxima: “o bastante nunca bastará”.
A cultura, no
entanto, se altera conforme os imperativos do tempo, do meio e das próprias
aspirações e conquistas humanas. Apesar das vulnerabilidades da cultura
contemporânea, sobretudo nos aspectos já citados nesse texto, convém
observarmos que os seus limites e efeitos poderá nos conduzir para novas
reflexões sobre a “nossa forma de estar no mundo” ou a forma como estamos
consumindo nosso tempo, nossa inteligência e, por fim, nossa saúde. O próprio
Bauman tem o ensejo de proclamar:
Portanto,
somos todos artistas de nossas vidas – conscientemente ou não, de boa vontade
ou não, gostemos ou não. Ser artista significa dar forma e condição àquilo que
de outro modo seria sem forma ou aparência. Manipular probabilidades. Impor uma
“ordem” no que, de outro jeito, seria o “caos”: “organizar” uma coleção de
coisas e eventos que, não fosse isso, seria caótica – aleatória, fortuita e
imprevisível - , tornando ocorrência de alguns desses eventos mais provável que
a de todos os outros.[3]