Jerri Almeida
Nas sociedades antigas, anteriores à Era Cristã, as
festas pagãs estavam fortemente vinculadas às mudanças de estação, configurando
os ritos de passagem. As cerimônias de passagem e de purificação compunham, no
universo das representações, a transição do inverno (estação que simbolizava a
morte) para a primavera, que anunciava o renascimento da vida. As
“saturnalias”, por exemplo, eram festividades oferecidas a Saturno, o deus da
fertilidade e, ao qual, associava-se a idéia da abundância e do excesso.
Por ocasião desses festejos, instituiu-se uma espécie
de reversão da ordem social. Momentaneamente, os escravos assumiam a posição
dos senhores, sendo-lhes permitido gozar dos benefícios da classe dominante, em
meio a muita comida e bebida. Vivia-se um período festivo onde buscava-se a
transgressão temporária da ordem estabelecida. Tais festejos e cerimônias, onde
certos participantes usavam máscaras (de animais), dançavam, cantavam e
cometiam excessos sexuais, atingem, também, o mundo medieval.
A palavra “carnaval” teria, no mínimo, um duplo
significado: o primeiro estaria vinculado aos excessos cometidos também em
relação à alimentação, daí: “carne vale”; ou, numa segunda hipótese, em
referência aos carros alegóricos utilizados nos cortejos: “curris navalis”.
Seja como for, o fato é que a “festa dos loucos”, assim denominada na Idade
Média, permitia a exaltação dos pobres e oprimidos, na reversão momentânea de
suas posições sociais, liberando seus desejos e imaginação.
Na prática, essa tradição ancestral, permeada de
sincretismo – com suas variações – fazia parte da cultura dos Celtas e
Germânicos, povos extremamente importantes na formação da Europa medieval.
Esses festejos, muito embora o confronto com a Igreja Católica, terminaram
sendo incorporados na cultura Ocidental cristã.
Para o filósofo russo Bakhtin, o carnaval representava
o “mundo às avessas”, pois originava um mundo “não-oficial”, exterior à Igreja
e ao Estado. Assim, o tempo do carnaval ficava pleno de possibilidades e
deixava de ser mediado pelas categorias usuais que distinguem os indivíduos:
riqueza, posição social, poder, etc.
A rigor, adotando-se o viés da “loucura”, ou “loucos”
(foliões) poderiam agir com extrema liberdade na manifestação de seus impulsos
reprimidos pela ordem religiosa e social vigentes. Todavia, deste o século IV,
a Igreja havia instituído o período da quaresma: nos quarenta dias que
antecediam a Páscoa os fiéis eram constrangidos a viverem em abstinência da
carne (menos de peixe), de sexo e de divertimentos. Isso objetivava um duplo
fim: fazer os fiéis relembrarem anualmente o martírio, morte e ascensão de
Cristo, e puni-los pelos excessos cometidos no ciclo festivo de inverno (no hemisfério
norte), o carnaval.
A “festa dos loucos”, trazida pelos portugueses,
chegou ao Brasil por volta do final do século XVI. Provavelmente foi nesse
período que se introduziu no Brasil o Entrudo. Trazidos por colonizadores
portugueses das ilhas da madeira, açores e cabo, No Entrudo as pessoas se
jogavam água suja, farinha, ovos, etc. Essa “brincadeira” era praticada em
família e, mesmo, nas ruas, gerando-se um problema para as autoridades locais. Para
muitos pesquisadores, há uma relação próxima entre esse divertimento e o
carnaval. Nesse caso, ocorreu provavelmente, pelo processo histórico, uma fusão
ou mescla entre esses dois elementos, definindo novos comportamentos
socioculturais.
No período monárquico brasileiro, a elite aderiu,
obviamente, ao modelo de festa carnavalesca européia, principalmente o de
Veneza. Aderiu-se aos bailes de máscara em clubes e teatros. Segundo o
antropólogo Roberto Damatta, a partir de 1840 é que os chamados bailes de
clubes passaram a ganhar mais espaço na sociedade carioca. Antes disso, o
carnaval, no Brasil, era uma espécie de festa familiar e de bairro.
Mesmo no início do século XX, por mais que a presença
popular fosse ganhando espaço, o carnaval ainda continuava uma festa para os
mais abastados. Todavia, foi com o governo de Getúlio Vargas, a partir dos anos
30, que os interesses políticos vigentes permitiram que o carnaval brasileiro
assumisse uma matriz mais popular, também de influência negra. Pode-se dizer
que no período do Estado Novo (1937-1945), Getúlio buscou a definição de uma
“identidade nacional” para o Brasil. Com isso, o carnaval passou a ser
trabalhado como um dos três pilares dessa identidade, funcionando como uma
espécie de ”festa agregadora” na nacionalidade.
O carnaval não é, portanto, uma festa tipicamente
brasileira. Em Nova Orleans (EUA) o carnaval começa em 6 de janeiro. Em Veneza,
o carnaval ocorre ao longo de dez dias, iniciando em 6 de fevereiro. É um
carnaval mais comportado, com as tradicionais máscaras e fantasias que remetem
a realeza do passado. Não há músicas características. Na programação se inclui
até shows de jazz. Já na Inglaterra o carnaval é celebrado somente em dois dias
do feriado bancário do mês de agosto. A festa londrina, por exemplo, envolve
desfiles e comilança farta.
Em seu livro, “Carnavais, Malandros e Heróis”, Damatta
situa o carnaval no universo dos rituais brasileiros, onde uma parcela mais
despossuída da sociedade ganha o centro das avenidas e o foco das atenções.
É nesses dias que a “atriz global” vai ao encontro dos
pobres e anônimos integrantes das escolas de samba, para “aprender” sobre o
desfile e ensaiar os passos certos. Esse parece ser um rito que pretensa e
superficialmente, assume o papel de homogeneizar as categorias sociais.
Categorias que, via de regra, estão à margem da sociedade. Dessa forma, os
ritos “revelam coisas”, mas também “encobrem coisas”.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec/Unb, 1987.
DAMATTA, Roberto. Carnavais,
Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6a. ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
MACEDO, José Rivair. Riso,
Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS,
2000.